Abro o envelope com o coração, só sinto o coração. Nem as mãos sentem o envelope, nem os dedos o papel. Começo a ler e não consigo entender... mas isso foi explicado... mas como é que... a decisão... a decisão é devastadora e impossível de cumprir.
Levanto-me. Sim, tinha-me sentado. Tenho que sentir as pernas, outra coisa além do coração. Tomo consciência como é que as notícias do Correio da Manhã acontecem. Decisões injustas levam a actos tresloucados e só me apetece cometer um qualquer. Claro que não vou fazer nada, mas...
Já não me recordo quando é que deixei a minha vida ser arrastada para a justiça. Quando é que dei aos outros espaço para me imporem decisões à martelada.
Este é realmente o martelo da justiça portuguesa. A vida suspença anos a fio para ver imposta uma injustiça visível na própria sentença, na lógica parcial da argumentação.
Tem que ter havido um dia, uma situação, em que fiz uma escolha errada. Esse dia tornou o resto inevitável. O instante imediatamente anterior à avalanche. Aquela que arrasa tudo à sua passagem. No final, se depois aquele castanheiro ficou de pé ou se foi aquele pinheiro, pouco importa. O que importa é a devastação e ela é inegável.
Um deserto.
Um deserto gelado de branco frio a perder de vista.
Nem um ser vivo, uma planta, nada.
Uma imensidão de branco estéril
É como me sinto.
Sem dignidade nem ser
Nem nada.
Agarrado por mentiras
que me cercam como uma teia
Apanhado pela aranha
caio e tropeço até deixar de sentir.
Já não me sinto.
Ornatos Violeta - Capitão Romance
- Fui eu que fiz!
Afirmou do outro lado do balcão com orgulho de artesã à espera de um reconhecimento, de um cumprimento.
Nem o consegui dizer, fui imediatamente interrompido por alguém que passou por trás de mim e se veio colocar à minha direita.
- Deixou cair um papel no chão.
Olhei para ela. Uma morena da minha altura, rosto de traços finos com óculos de armações em massa preta. Sorri e olhei para a esquerda. Lá estava a factura do telefone perdida atrás da cadeira onde estive sentado.
- Infelizmente é uma conta para pagar. Bem tentei esquecê-la...
Disse enquanto me baixei para a apanhar.
- Se a deixar aí, juro que não volto a chamar a atenção.
Respondeu com um sorriso.
- Esta ainda vou pagar, talvez para a próxima... boa tarde e obrigado.
Saí para a rua empurrado pelo olhar do mais que provável marido. O frio e os chuviscos arrefeceram-me a cara e mãos, até me souberam bem.
Um destes dias volto cá, os croissants são fabulosos e acabei por não o dizer.
Mayra Andrade - We used to call it love
Não sou de entrar no mar de rompante. Preciso de entrar devagar, permitir que o corpo se habitue à temperatura da água.
Chego à beira do mar e paro com a rebentação a chegar, no máximo, abaixo do joelho.
A hora que passei ao sol faz sentir os seus efeitos. Cada centímetro de pele seca atingido pela água provoca um calafrio.
Quando uma onda me molha o baixo ventre sinto tudo a congelar. Até o cérebro! Por momentos fico imóvel com um esgar de sofrimento na cara, como se me estivessem a arrancar o figado pela boca. Talvez seja esta a demonstração que os homens só pensam com a cabeça de baixo.
Ainda falta a barriga. Só de pensar nisso estremeço! Molho as mãos nesta onda e ponho-as na barriga. Assim já se vai habituando... calculei mal a distância e parece que esta onda vai-me molhar a barriga.... ahhhhhhhhhh safa!!! Caramba! Isto hoje está frio!
Com a barriga já molhada, deixou de haver motivo para não mergulhar. Vamos acabar com isto!
Mergulho de cabeça na onda que me parece maior. Sinto que a cabeça até parece encolher enquanto dou duas braçadas debaixo de água. Volto à superfície e sopro com força. De alguma forma o sopro parece alíviar o frio. Tenho que me mexer. Dou dez braçadas vigorosas num estilo parecido com o Crawl. Volto para trás em bruços e paro.
Está boa! Espectacular!!!!
Daí a 20 minutos saio da água revigorado, tonificado.
"Está espectacular", digo...
Quem vir de fora, até parece que não me custou a entrar. :)
Ornatos Violeta - Coisas
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