Dave Matthews Band - If Only
Hoje levantei-me e passei o dia a fazer coisas. Coisas. Nem me lembro bem o que fiz, mas sei que fiz algumas das coisas que tinha que fazer.
Parece que ando a meio metro do chão. Costumo associar este estado à paixão, mas isso não existe neste momento, talvez seja a nostalgia da paixão.
Foto de Walker Evans
Há quem defenda que é mau estar apaixonado, mas não me sinto vivo sem paixão, sem amor. Por isso fiz coisas... é o que vou fazendo sem essa emoção que me devora, que me controla.
Mudei de casa. Enquanto tiro os livros dos caixotes e os arrumo, encontrei "Os versos do capitão" do Neruda e vieste-me à memória. Tu e a determinação incontrolável que sentia de te ter, de te fazer e ser feliz. Parece inacreditável como continuas viva dentro de mim, como se tivessemos estado juntos ontem. Como se ainda te sentisse o cheiro, o teu corpo contra o meu. Como se ainda sentisse a pele na pele. Se quiser, consigo lembrar-me dos detalhes do teu corpo, dos teus gestos.
A vida continua. Fiz uma massada de goulash com caril. Não sei se faça sopa, mas não me apetece sopa; faço amanhã.
Tanta coisa para fazer e tu a pensar em disparates... se não dá, não dá, porque é que insistes!?
Adotei o novo acordo ortográfico. Espero conseguir adaptar-me ao que me proponho, em nome da standardização pretendida.
Acordei sem me levantar. A falta de vontade é gigantesca, pareço uma grua gripada.
A cabeça sempre a pensar... será que não se consegue parar de pensar? Esvaziar a cabeça?
Sinto-me desfocado. Uma fotografia tirada à noite, quase sem luz, cheia de grão, desfocada e tremida.
(foto de Aníbal Novo)
Percorro as ruas de Lisboa, sem as ver. Os caminhos quase de cór, sem os sentir.
As ruas sem a agitação de outros Natais, agonizam exangues, pobres, lentas.
Também não sinto o Porto, nem as suas calçadas cinzentas de cimento entregues às gaivotas, companheiras de sempre. Para elas não há crise, nem governos, não há troikas, nem empréstimos.
Não me sinto por milhões de pequeninos motivos. Por milhões de pequeninas dores.
Rui Veloso - Pequena Dor
A reação tarda em chegar. De repente faz-se o clique, mas até lá é preciso esperar. Não vejo como nem porquê, mas esperar parece ser a melhor opção.
Onde está o projeto que me vai fazer levantar cheio de vontade de fazer coisas? Estou à espera desse clique.
A vertígem de estar tudo em aberto pode ser aterradora. O mundo está aí ao meu dispôr. É só apontar numa direção.
As relações, os afectos, os filhos, a família, os amigos, os colegas, os cursos, as certificações, o trabalho, os bens ... qual é a medida do sucesso? Qual é a medida do falhanço?
É difícil sentir-me bem em mim. Por vezes preciso do silêncio, preciso de estar comigo. Saí de casa com a chuva a cair. Protejo o livro dentro do casaco, não gosto de ver livros com páginas molhadas de chuva. Não vou ler, quero simplesmente a sua companhia. Aquele cantinho acolhedor resguardado dentro do casaco.
Respiro. Inspiro aquele ar frio... expiro-o já processado. Nada de especial, sempre o fiz. Sempre não! Houve aquele dia em que te estava a chatear de propósito irmã. Era grande mas imaturo, como todos os rapazes de 15 anos a chatear as irmãs são. Já não me conseguias bater sem que o deixasse. Deste-me um murro nas costas e de repente parei de respirar. Incrédulo quis inspirar e não consegui, uma, duas, três tentativas e nada... já deitado no chão lá comecei a conseguir. Não foram mais de 20 segundos mas foi assustador.
Hoje olho para trás e sei que fiz o que tinha que fazer. Melhor ou pior, fiz. Não me devia sentir derrotado, sem vontade. Nem eu nem os outros 16,9% de desempregados.
Hands on Approach - Days of Our Own
Estava uma manhã fria e húmida. O nevoeiro não deixava ver mais de 30 metros em redor.
Saiu da pastelaria aborrecida. O empregado nunca reparava nela, parecia que nunca a ouvia. Apesar dos seus pedidos repetidos por uma torrada e uma meia de leite, era surdo à sua voz. Perdia sempre imenso tempo na pastelaria, mas raramente perdia o autocarro das 8:10h.
Às 8:27h entrava no barco para o Terreiro do Paço, pouco antes das 9:00h estava a entrar na loja.
Sempre a mesma rotina, sempre a mesma vida. Poucas surpresas. A família esperava dela que casasse e tivesse filhos, mas nenhum rapaz parecia ser o tal. Nenhum príncipe encantado, só desilusões desdentadas e desbocadas.
Fora educada para se portar bem e por essa via chamar a atenção de um bom rapaz, como lhe dizia a mãe. As pessoas já não pareciam valorizar essa postura e ela esperava, esperava sempre... dos olhares cruzados à troca de palavras, destas à desilusão e até mágoa, nunca ia grande distância.
Ia continuar à espera, sempre à espera. Uma vida assim, deitada fora por convicções que nem sabia se eram realmente dela.
Crowded House - Don't Dream It's Over
A caneta desenha letras no papel, criando um estranho quadro, uma estranha imagem de linhas separadas a espaços... por espaços. O papel, outrora de uma candura tipificada, normalizada e monótona vai-se deixando manchar sem retorno. Também a vida não tem volta.
As palavras foram ditas sem retorno. Palavras de fuga, palavras de enganar, palavras de indecisão. Qualquer palavra era boa para evitar a perda. Qualquer ardil era bom para atingir aquele fim.
As pessoas revelam-se em três tempos, basta enfrentarem uma crise, uma situação extrema e lá estão elas a espreitar, os seus princípios, a sua estrutura, os seus valores.
Fingiu um desequilíbrio instantâneo e avançou vacilante pelo corredor. O tecto baixo misturado com as lâmpadas flurescentes projectam sombras em todas as direcções. Ruídos estranhos e ligeiros, numa quietude de vigília. Uma calma tensa.
As paredes brancas cheias de placards informativos, "Saída", "Recepção". Pessoas paradas pelos cantos.
A decisão surgiu, sempre demorada. Sempre a mesma espera... as regras... os procedimentos... as vontades... a dor.
O homem sempre quis brincar aos deuses, deformar sonhos, encontrar a insustentável leveza do ser. Soa sempre a piada de mau gosto.
Bob Dylan - Jokerman
"Porque quem ama, tem medo de perder"
Quem ama, também tem medo de sofrer. Quem ama, tem medo de amar demais. Quem ama, tem medo de se enganar. Quem ama, tem medo...
Levantou os olhos do livro, olhou para a esquerda e não viu vivalma, à direita só um pescador esquecido lá ao fundo, uns barcos mal semeados no Tejo e mais nada. Quis pegar na mota e seguir até Roma, Florença, Berlim, Helsínquia. Quis pegar no barco e velejar até às Caraíbas, descer à Patagónia e voltar pela Oceânia, Moçambique. Pegar no balão e subir pela Tanzânia, Zanzibar, Egipto e voltar. Chegar e perceber que tudo estava igual e no entanto, tudo tinha mudado completamente.
Tenho saudades dos meus filhos, da sua alegria transbordante quando estão juntos. Nem sequer se apercebem que não consigo conter um sorriso quando sem envolvem em debates sobre isto, sobre aquilo, sobre conceitos que são só deles, entusiasmados uns com os outros. Esquecem-se que ali estou, a levá-los para algum lado em silêncio, enquanto me alimento daquela alegria, enquanto se alimentam mutuamente de satisfação.
The Gift - Fácil de entender
Hoje joga a selecção e estou numa inquietação sem justificação, que nada tem a ver com a selecção. É uma inquietação interior, que não me deixa em paz.
Hoje ouvi que somos um povo megalómano. O Júlio Machado Vaz partilhou esta visão com o auditório da Antena 1 e eu estou-me a sentir arrastado para concordar. Nunca tinha visto as coisas assim. Porque tenho sempre que querer tudo? Quero toda a felicidade, todo o amor, toda a paixão, toda a aventura, toda a glória... tudo!!!
Sou um megalómano da felicidade.
Olhou à volta e viu a outra margem. Não sentia nenhum apelo, nenhum chamamento, nada. Só o vazio o acompanhou, enquanto de blusão vestido e mãos enterradas nos bolsos caminhou ao longo do rio. O frio continuou a entrar por todas as frestas possíveis e sempre a conseguir encontrar uma superfície de pele. Pele que passava a ser de galinha.
O coração é uma estranha dimensão do ser. Agora batia compassado, ritmado pelos seus passos, um autêntico metrónomo. E no entanto até podia estar parado. Batia onde, se estava tão cheio de vazio? Experimentou correr só para o sentir melhor, para que batesse com força no peito e voltasse a estar vivo. Parou. Embora continuasse a bater não resultava de nenhuma emoção, só batia. Não chega. Para quê bater sem emoção!? Sem emoções somos vegetais, plantas que se mexem, crescendo envelhecendo sem objectivo. Envelhecer não basta.
Somos todos diferentes uns dos outros. Uns conservadores outros liberais, uns altos outros magros, uns maduros outros entropecidos, uns alegres outros pobres. Resultamos de combinações improváveis e nem sequer temos a certeza do que procuramos. O que procuramos para nós, para os outros, para os nossos. Essa diferença é bela e aterradora. Aterradora porque separa, bela porque junta.
Se fossemos iguais seríamos incapazes de amar. Não conseguiríamos distinguir o amor por um filho, do amor ao próximo. Não existiria amor, seríamos ... alfaces.
Caminhou até chegar ao fim do trilho. Olhou o horizonte cinzento e pensou na fotografia estranha que daria. Um mar cinzento, interligado a um céu enublado, carregado de chuva. A preto e branco, em tons de cinzento.
Voltou para trás pelo mesmo trilho e o céu desabou sobre ele, mas não lhe pesou.
É leve o céu.
Ouviu o barulho leve das ondas de rio a borbulharem na margem. A noite estava clara e os reflexos viviam na água numa espécie de competição de pirilampos. Ao longe os ruídos do cais a oxcilar ao sabor da ferrugem e das ondas. Sentiu a margem plena de vida, dentro e fora de água.
Qualquer coisa não estava bem. As emoções desarrumadas dentro de si, a constante angústia, ansiedade, mal estar, não sabia...
Levantou-se do banco de pedra e caminhou ao longo da margem. A temperatura anormalmente quente para a altura do ano, a arrogância intelectual dos políticos troiqueiros, indiferentes ao sofrimento que provocam, tudo lhe ocupava a mente.
- Dê-me uma moeda. Pediu alguém. Abanou a cabeça sem prestar atenção.
Avançou em direcção ao carro, procurou a chave no bolso e entrou. O telefone tocou.
- Está!? Olá mãe... não, hoje não me dá jeito ir aí jantar... pode ser antes na sexta? Na sexta estou com os miúdos... ok. Beijinhos.
Meio sonâmbulo arrancou, fundindo-se no escuro da noite.
Sentou-se no passeio. As pedras da calçada polidas do movimento semanal serviam perfeitamente para o que queria. Não se importou se sujava os calções ou se podia romper os ténis, nem o que pensariam os adultos que passavam por ele na rua.
Tirou do bolso os cromos e fez a contabilidade dos que tinha repetidos e dos que tinha trocado. Separou os "novos". Iam direitinhos para a caderneta quando chegasse a casa. Guardou-os assim separados em bolsos diferentes e levantou-se.
Correu até ao Nº 8 da mesma rua e tocou no 3º Esqº. O trinco da porta do prédio destrancou-se, subiu o 1º lanço até à abertura das escada e perguntou lá para cima.
- O Miguel está!? A mãe do Miguel assomou ao patamar e respondeu.
- O Miguel está a estudar, quando acabar é que pode ir brincar.
- Está bem. Respondeu.
Correu rua abaixo até casa, entrou a correr e foi buscar a bola ao quarto. A mãe resmungou qualquer coisa sobre lanchar, só se conseguiu escapar com uma maça na mão. Correu para o pátio que sabia ter um muro contra o qual podia jogar. Imaginou a baliza e o guarda redes, fintou pelo menos 7 defesas imaginários antes de chutar ao muro e marcar um golo de antologia.
Entre dentadas na maçã e fintas passou-se 1/4 de hora. O Miguel apareceu todo limpinho e mostrou-lhe os cromos novos que tinha. Ele tinha conseguido o Diamantino do Benfica.
- Que sorte! E trocaste por quem?
- Pelo Bento.
- Xiii tenho 3 cromos do Bento, vê lá se me arranjas o Diamantino lá com os teus colegas.
Jogaram à bola e depois foram ver se o Zé já podia vir brincar. Treparam para um muro com quase 4 metros e foram até ao quintal do prédio do Zé por cima dos muros. Um gato fugiu assustado e o cão do pátio do Nº 6 ladrou que nem um doido. A Dona Esmeralda apareceu à janela a ralhar que iam cair dali e que ia fazer queixa. Apanharam umas nesperas pelo caminho e provaram, o Miguel deixou cair um pingo de sumo na camisola.
- A minha mãe diz que essas nódoas não saem. O Miguel encolheu os ombros e seguiram.
O Zé já podia vir brincar e os três partiram rua abaixo. O mundo estava ali para ser descoberto, havia sempre mais pátios, mais miúdos, mais cromos até ao pôr do sol.
Abriu o site como tantas vezes antes o fizera, a visão de um post de alguém que reconhece... e partiu-se.
Nem gostava da cantora, mas a música estilhaçou-o por dentro. Partiu-o em mil pedaços brilhantes e miudinhos, quase pó.
Lá estão eles, os lugares que conheci pela sua mão, em que fomos felizes, em que bebemos a felicidade um do outro. Em que nos misturámos como duas mãos num aperto abraçado.
Também eu sei de cor cada lugar teu, e porque não meu.
Basta passarem nas Notícias as buscas de um "afogado" e logo me salta à memória que aquele mar é meu, que ela mo deu uma noite. Basta passarem uma notícia sobre estudantes do Erasmus a serem entrevistados junto ao rio e o coração acelera. Basta ouvir o trânsito de manhã e mentalmente lembro os locais, imaginando-os cheios de carros e condutores impacientes. Ela está em todo o lado, procuro-a em todo o lado...
Fomos corajosos. Vivemos as emoções sem nenhuma reserva, sem ter "o pé atrás". Esfolámo-nos todos, pelo que hoje somos ricos. Ninguém se retraiu.
Queria viver tudo outra vez, noutra situação, noutra dimensão, numa outra ilusão, mas estar consciente de que tudo acaba, como tantas vezes disseste.
Hoje dói demais. Esta angústia que reconheço em cada pedra das calçadas onde passámos, daquelas em que ficámos de passar. Dói a cada música das nossas, a cada assunto nosso, a cada lembrança...
Por tudo isso...
Mafalda Veiga - Cada lugar teu
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