Vestiu a camisola de lã cor de sangue escuro. Com o frio que estava, só mesmo a lã o conseguia aquecer. Pegou no blusão, carteira, chaves e saiu de casa batendo a porta. O som dos seus passos no chão húmido ecoou pelas escadas do prédio. A cada passo a sensação de pisar areia no chão, areia que no verão nem se sente, nem se nota.
Iyeoka - Simply Falling
Já na rua, o frio descobriu forma de lhe encontrar a pele, nas mãos, no pescoço, na cara. Empurrou as mãos para os bolsos das calças de ganga, mas só se sentiu apertado, preso. Voltou a guardar as mãos nos bolsos do blusão. Tomou a direcção habitual para apanhar o metro. Pelo chão vários castanhos nas folhas de plátano. Os sapatos com sola de borracha manhosa, a chuva e as folhas levaram a pequenas escorregadelas sucessivas. Atravessou a rua para o passeio nu, sem o cobertor de folhas nem o perigo de queda.
Da estação solta-se um ruído de comboios que chegam e partem, misturado com o da escada rolante. Pessoas apressadas, sempre apressadas, sempre com receio de perder o metro, sempre com medo de esperar e se verem perante si mesmas.
Saiu no Martim Moniz, início da Mouraria. O Centro comercial enorme num dos lados da praça. Atravessou-o e viu-se frente a um bloco de mármore rosa meio esculpido, onde se percebe uma guitarra portuguesa. Entrou na rua do capelão e re-encontrou Lisboa e as suas ruelas. Sentiu-se em casa. Esta é a Lisboa que é boa de viver, a Lisboa do fado. Mas não um fado triste e soturno, um fado alegre e bem vivo. Um fado a cada esquina. Deixou-se entranhar pelo espírito e amou profundamente.
Lisboa também é isto.
Hoje lembrei-me de uma das melhores canções de sempre da música portuguesa.
De Luís Pedro Fonseca, que a sentiu, escreveu e lhe deu corpo, para a Lena d'Água, que lhe deu voz e inspiração. O José Cid já a interpretou e até uma miúda que mal sabe falar português (é uma versão linda).
Sempre que o Amor me quiser
Basta fazer-me um sinal
Soprado na brisa do mar
Ou num raio de sol
Sempre que o Amor me quiser
Sei que não vou dizer não
Resta-me ir para onde ele for
E esquecer-me de mim
E esquecer-me de mim
Como uma chama que se esquece
Numa fogueira que arde de paixão
Sempre que o Amor me quiser
Sei que a razão vai perder
Que me hei-de entregar outra vez
Como a primeira vez
Sempre que o Amor me quiser
Vou-me banhar nessa luz
Sentir a corrente passar
E esquecer-me de mim
E esquecer-me de mim
Como uma chama que se esquece
Numa fogueira que arde de paixão
Sempre que o Amor me quiser
Levanto-me da cadeira e vou à janela. Lá fora chove e a iluminação de rua empresta um tom surreal à imagem, enriquecida pelo som monótono de milhares de pingos a caírem no chão, nos carros, nas árvores, na roupa. Sinto frio, mas fico mais um pouco. Ninguém na rua.
Se fumasse acenderia agora o cigarro e deixaria de sentir a dor, deixaria que o fumo ocupasse o vazio. Podía encher a cabeça de música de batida previsível, sem riqueza instrumental nem rasgos de génio ou não. Talvez numa qualquer danceteria, com um qualquer grupo de amigos mais ou menos perfeitos desconhecidos, mas isso nunca me preencheu. Podia bater com a cabeça na parede, amolgar a tinta, amolgar-me por dentro. Retirar a forma, atribuíndo-lhe novos tons, novas claves de sol ou de dó, dó de mim próprio. Que patético... auto-comiseração... será que agora deu-me para isso? Como cheguei aqui?
Volto para a cozinha, pego no grão demolhado e deito na panela de pressão, junto água e ponho ao lume. Olho o relógio e calculo a hora a que estará pronto. Tarefas rotineiras que me trazem de volta. A vida chama, puxa por mim, por todos. O mundo não espera que eu resolva nenhum problema. Porque haveria de esperar?
Assumo as minhas responsabilidades, todos temos que o fazer.
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